Em 20 de novembro, dia da consciência negra, a Câmara fará a entrega a medalha Antônia Alpaídes a nove indicados pelas bancadas partidárias. Uma das indicadas, a professora e pesquisadora Ana Lucia Martins, que já atuou na rede municipal de ensino, nos concedeu entrevista falando sobre meios de combate ao racismo e sobre a situação da mulher negra em Joinville.
Desde 1994 Ana Lúcia participa do movimento negro na cidade e foi uma das fundadoras do Coletivo Ashanti de Mulheres Negras de Joinville, criado em 2014 como uma rede de comunicação entre mulheres negras da cidade para promoção de identidade, valorização da cultura, combate à violência, à discriminação e à marginalização da mulher negra. Ana Lucia também é a titular do segmento da mulher negra no Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial de Joinville (Compir).
Entre as medidas para combate ao racismo, Ana Lúcia defende a implementação plena da Lei Federal 10.639/2003 nas escolas públicas, privadas e instituições de ensino superior que prevê a inclusão no currículo escolar do estudo da contribuição da população negra na formação do Brasil e questiona a ausência de mulheres negras em posições de poder, como em cargos de direção em empresas ou em postos de primeiro escalão no Poder Público.
JORNALISMO CVJ – Quais entendes ser as principais dificuldades enfrentadas pelas mulheres negras em Joinville? E quais são as possíveis soluções?
ANA LUCIA MARTINS – Como em todas as cidades do Brasil, a invisibilidade das mulheres negras é naturalizada. A invisibilidade se dá em diferentes situações, as mulheres negras, assim como os homens negros, não ocupam lugares de poder e controle social. E quando ocupam, não é o lugar de protagonismo, ocupando papeis e funções subalternizadas.
As soluções passam por mudanças estruturais nas mais diferentes áreas e relações da sociedade. É preciso antes de tudo entender o sistema de privilégios para determinados grupos em detrimento de outros. Nesse caso é necessário estudar e entender como se dá o processo de exclusão das mulheres negras.
Um bom exemplo para começar é a ausência de mulheres negras no Poder Legislativo em Joinville, tema que até hoje não despertou interesse de pesquisadores ou legisladores na cidade. Iniciei minha pesquisa nessa área a partir da minha própria inquietação com a naturalização dessa ausência, não só em Joinville, mas na maioria dos municípios catarinense.
A política de cota de gênero nos partidos não garantiu a participação de mais mulheres nas câmaras legislativas, e nesse contingente mínimo de representação feminina nestes espaços, a mulher negra está ausente, por vários fatores e que somente uma pesquisa mais aprofundada poderá explicar.
Grosso modo, podemos concluir que não é prioridade dos partidos a representação qualificada de mulheres nesta seara, muito menos de mulheres negras, o que implica na manutenção de privilégios de determinados grupos, no caso, de homens brancos e mulheres brancas.
JORNALISMO CVJ – Há alguma dificuldade que seja mais característica aqui de Joinville que em outros pontos do país? Por que elas ocorrem?
ANA LUCIA – Sim. Não encontramos mulheres negras ocupando cargos de primeiro escalão em empresas, na gerência de estabelecimentos comerciais ou no serviço público municipal, sendo que é no serviço público municipal onde se concentra o maior número de mulheres negras. Tivemos na gestão do prefeito Carlito Merss, pela primeira vez na história do município, uma secretária de educação negra, ainda que por pouco tempo. Tivemos também uma gerente de ensino, supervisoras, coordenadoras e gestoras, um bom número de mulheres negras em cargos comissionados na gestão de 2009 a 2013, se comparado com outras gestões municipais, e estou contabilizando somente as mulheres.
Como disse lá no início, [a ausência de mulheres negras nesses postos] ocorre por vários fatores que merecem ser estudados. Do lugar de onde falo, sob a minha percepção com base em algumas leituras acerca da estruturação do racismo na sociedade, deve-se à falsa democracia racial; às consequências do processo de escravização sobre a emancipação das mulheres negras; aos estereótipos ligados às mulheres negras, que as subjugam e as inferiorizam; ao machismo combinado ao racismo; são questões que estão interligadas e são determinantes nos processos de escolha e exclusão. São questões históricas que mantêm mulheres negras na base da pirâmide social.
JORNALISMO CVJ – Já ouvi de alguns representantes do movimento negro que uma das principais dificuldades está no pensamento “colorista”, que de alguma forma estimularia membros da população negra a se classificarem não como negros propriamente, mas dentro de uma escala com gradientes de cor. O que é colorismo e de que forma observas que esse pensamento se reflete na cidade?
ANA LUCIA – Depende de quais “dificuldades” se está falando. Se estamos falando de lutas e de movimento de lutas contra o racismo, precisamos partir de um entendimento muito simples. Não somos todos iguais. Não se exige que brancos pensem igual. Por que que se espera que a população negra, tão diversa, pense igual?
Quando falamos de racismo, e sabemos que ele é estruturante e determina as condições e formas de viver da população negra no Brasil, ele atinge a população negra independente do quanto ela se reconhece negra ou não. A questão da identidade racial e do pertencimento é muito mais abrangente e tem raízes muito pautadas no eurocentrismo. As consequências do racismo enquanto categoria de raça, incidem sobre negros e negras, pretos e pretas, pardos e pardas, o racismo está acima de termos como o colorismo.
JORNALISMO CVJ – Também já ouvi que há diferenças entre racismo estrutural e individual. Qual a diferença entre as duas formas? Quais os meios de combatê-los?
ANA LUCIA – O racismo é a base estrutural das desigualdades no Brasil. Ele é estrutural porque constitui as relações no seu padrão de normalidade, usando aqui, uma definição do filósofo Silvio Almeida. Como sendo algo normal, normatizando as relações que estruturam a sociedade.
O racismo determina as condições de viver e sobreviver da população negra, consciente ou inconscientemente está determinada a superioridade de um grupo sobre o outro. Dificilmente iremos eliminar o racismo, sem que haja o reconhecimento do racismo e dos privilégios de ser branco.
O racismo individual que é cometido por uma pessoa e o conjunto de pessoas que praticam o racismo individualmente é tão nocivo quanto, a diferença basicamente é que este racismo individual é mais fácil de identificar e punir.
O racismo institucional é ainda mais perverso, acontece com muito mais frequência e está mascarado ou maquiado por trás de procedimentos que sugerem uma certa “normalidade” em sua prática.
Tanto o racismo institucional quanto o racismo individual contribuem para o racismo que estrutura e determina as relações na sociedade.
JORNALISMO CVJ – Conforme dados do Censo de 2010 do IBGE, apenas 2,7% das pessoas que ganhavam mais de 10 salários mínimos mensais em Joinville eram negras. Porém, o mesmo Censo indica que a população negra da cidade é de aproximadamente 14%. Essa disparidade pode ajudar a pensar como o racismo ocorre na cidade? De que forma?
ANA LUCIA – Sim. Como acabei de responder acima, o racismo é a base das desigualdades sociais no Brasil, digo isso com base nos estudos de Sueli Carneiro, Cida Bento, Jurema Werneck e Abdias Nascimento, para citar alguns estudiosos. Não seria diferente em Joinville, uma cidade que nega a presença de negros e negras em sua história.
Não há um marco cultural da população negra em nossa cidade. Somos o município com o maior percentual da população negra do estado e quando olhamos a divisão geográfica do município, sabemos exatamente onde está localizada a população negra, ou seja, estão nos lugares mais afastados do centro, com pior infraestrutura, escolas em piores condições, as regiões com os maiores índices de violência, estruturas sociais que dificultam a mobilidade social.
Independente do percentual, a população negra é a população que tem menos acesso à educação em todos os níveis, a saúde, a informação, ao direito e a justiça.
Em um país onde 56% da sua população é formada por negros e pardos que está sub representada nos espaços de poder e permanece na base da pirâmide social, não é surpresa esses dados em Joinville.
Quando se pensa uma cidade para todos, tem que ter políticas públicas que promovam a igualdade social com equidade. Não há outra forma, no meu entendimento.
JORNALISMO CVJ – É possível dizer que há silêncio sobre a o período da escravidão no Brasil? Em documentário recente, Where to invade next?, o diretor norteamericano Michael Moore pontuou que faltava aos Estados Unidos uma consciência maior da escravidão. O problema aqui é similar em seu entender?
ANA LUCIA – Não para nós negros. A única coisa que se estuda nas escolas, ou se estudava, é sobre a escravidão. Não se pode olhar o negro ou a população negra de África ou das diásporas somente sob a perspectiva da escravidão.
Beatriz Nascimento traz essa discussão nas suas importantes análises históricas sobre a importância dos quilombos durante e pós-escravidão. A constituição dos quilombos como forma de resistência e modelo de organização deve ser considerado com um importante patrimônio histórico da população negra. A escravidão não pode ocultar a capacidade de articulação e organização política de uma população mesmo privada de liberdade. A escravidão aprisionou os corpos e não o pensamento.
O legado deixado pela população negra escravizada, ninguém estuda. É preciso reescrever a história.
Sobre o silêncio em relação a escravidão, na perspectiva de uma reparação social, há uma dívida gigante deixada pelo processo de escravização. Uma consciência maior da escravidão seria reconhecer os processos de exclusão social da população negra marginalizada pós-escravidão. É preciso se perguntar o que aconteceu com milhares de homens, mulheres e crianças um dia após abolição. Para onde foram milhares de seres humanos desprovidos de qualquer direito ou recurso? Como sobreviveram e como sobrevivem os descendentes desses povos escravizados e marginalizados? É preciso se perguntar qual a diferença da chegada dos povos africanos e dos imigrantes europeus no Brasil.
Se é desse silêncio que falamos, concordo que precisamos falar muito, especialmente com aqueles que se mantêm no seu lugar de privilégio e se colocam contra cotas, por exemplo.
Não conheço o documentário que você citou mas há algumas centenas de bibliografias que falam sobre as consequências da escravidão no Brasil e o processo de marginalização e exclusão da população negra.
JORNALISMO CVJ – Você, pessoalmente, já passou por alguma situação de racismo?
ANA LUCIA – Muitas vezes. De forma explicita, cordial, disfarçada, mascarada… De todas as formas.
JORNALISMO CVJ – Que conselho dá a quem sofre com ele e eventualmente não participe do movimento negro?
ANA LUCIA – Não há conselho. Eu participo do movimento negro desde minha adolescência ou juventude, com alguns afastamentos e reaproximações. Não foi no movimento negro que tive consciência do que é ser negra, do que é o racismo. Mas, foi e é no movimento negro que me fortaleço e que buscamos nosso embasamento teórico e político para o enfrentamento do racismo. Diria que não podemos silenciar, que não devemos aceitar essa normatização que nos é imposta pelo racismo e que, apesar das dores e das dificuldades, precisamos enfrentar e superar, cada uma a seu modo, os limites que a sociedade nos impõe. Precisamos nos fortalecer, conhecer e exigir os nossos direitos, usar do nosso direito de escolha para eleger quem nos representa de fato, essa consciência política, não partidária, que os coletivos e grupos de mulheres negras tem pautado em suas ações. Precisamos dar voz ao protagonismo das mulheres negras comprometidas com mudanças sociais.
Djamila Ribeiro tem nos provocado nesse sentido, em uma de suas entrevistas ela diz que os partidos políticos precisam trazer as mulheres negras para visibilidade, visibilidade também é ideologia. E Ângela Davis disse uma frase que não podemos esquecer: “Não posso falar com autoridade no Brasil, mas as vezes não é preciso ser especialista para perceber que alguma coisa está errada em um país cuja maioria é negra e a representação é majoritariamente branca”.
Sabemos que isto está explícito, por algum motivo nos acomodamos e não nos apropriamos dessa verdade. É obvio que em disputas políticas tem outras questões envolvidas e muitas dessas questões limitam e afastam a população negra dessas disputas.
JORNALISMO CVJ – E qual recado deixas para brancos que queiram evitar o racismo?
ANA LUCIA – Primeiro de reconhecer o seu lugar de privilégio. O racismo só existe porque existem práticas racistas. Entender que é o racismo que estrutura a sociedade determinando o lugar dos sujeitos, classificando-os, determinando suas escolhas, impedindo sua mobilidade social, incidindo na sua qualidade de vida, no índice de violência, na saúde e que indiretamente. Todo branco contribui para a manutenção dessa estrutura social quando não se posiciona ou é conivente com a perpetuação desse sistema.
Onde cada um guarda o seu racismo? Quando se naturaliza a ausência de negras e negros em determinados espaços, quando você se coloca contra políticas públicas de igualdade social e de reparação você está contribuindo para manter essa estrutura.
Deixo aqui um trecho do artigo da Maria Aparecida Bento para reflexão e aprofundamento desse debate, cujo titulo é Branquitude: o lado oculto do discurso sobre o negro: “É habitual que pessoas que se inscrevem voluntariamente num curso sobre relações raciais, se considerem e/ou sejam consideradas progressistas, estejam interessadas nos problemas sociais e muitas vezes engajadas em diferentes formas de luta contra a opressão Ao discutir sobre racismo, elas esperam abordar uma opressão que ‘está lá’ na sociedade, e não em algo que as envolva diretamente, ou que envolva a instituição da qual fazem parte. Nem sempre estão desejosas de entrar em contato com a realidade de que, se são brancas, em alguma instância, são beneficiárias do racismo”.
JORNALISMO CVJ – Iniciativas como a medalha Antônia Alpaídes são boas formas de valorizar a população negra?
ANA LUCIA – Reconhecer a importante contribuição da professora Antônia Alpaídes para a história da educação de Joinville com certeza é importante. Poderiam ser criados selos e outras formas de reconhecimento a empresas que não racializam a contratação de funcionários e que promovem seus funcionários independente da cor ou do tom da sua pele.
JORNALISMO CVJ – Como vês as iniciativas do poder público de valorizar a população negra?
ANA LUCIA – Muito tímidas ainda. Deveriam adotar exemplos de outras cidades e estados de políticas de promoção para igualdade racial e social. Precisamos de políticas públicas para a saúde da população negra. Melhores condições de infraestrutura para as populações que vivem em áreas marginalizadas da cidade, entre elas, a população negra.
Precisamos de um espaço de representação da cultura negra em Joinville. Sabemos como a representação é importante, o sentido de pertencimento. Temos o Memorial Suiço, a Casa e o Museu da Imigração, a Barca Colon, a Festa das Flores, títulos que remetem a cidade à ideia de que somente os povos europeus e seus descendentes construíram e habitam a cidade.
É importante que o poder público assuma essa responsabilidade e faça a sua parte. Embora simbólicos, os espaços de representação dizem muito sobre a cidade, sua história e a história do seu povo.
Texto: Jornalismo CVJ, por Sidney Azevedo / Revisão: Jeferson Luis dos Santos / Foto: Coletivo Ashanti de Mulheres Negras de Joinville, divulgação