A Comissão da Verdade de Joinville ouviu nesta segunda-feira dois ex-presos políticos da ditadura militar em Joinville. O advogado Carlos Adauto Vieira e o bancário aposentado Edegar Schtzamann falaram por mais de uma hora. Eles lembraram suas prisões e a tortura psicológica que sofreram nos anos de chumbo. Nomes de militares custaram a surgir na memória deles, por vezes embaralhada pelo tempo.

Os dois relataram um dos maiores medos do regime: livros. “Dom Quixote”, considerado subversivo, foi queimado, assim como um álbum “comunista” do pintor espanhol Pablo Picasso. Um pastor evangélico, lembrou Edegar, ficou um ano preso porque não podia entregar dois revolucionários da classe operária: os personagens bíblicos Tiago e Isaías.

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Leia trechos dos depoimentos:

Carlos Adauto Vieira

“No dia 23 de março de 1964, vendo que pouca gente acreditava na possibilidade de um golpe e na ditadura que se instaurou, passei a procurar pessoas que pensassem como eu, para que pudéssemos publicamente mostrar nossa preocupação. Encontrei dos companheiros (…) e disse que tínhamos que fazer um comício público e denunciar, para que os golpistas ponham (sic) a cabeça de fora . (…) Em dez minutos, começaram a chegar pessoas com lenço no pescoço. Vimos que se tratavam dos que estavam preparando o golpe. Nós reagimos, tirei meu revolver, dei dois tiros pro ar e continuamos o comício e foi chegando povo (…) Em 31 de março tivemos a resposta: fui o primeiro preso político de Joinville. Abri a porta e era o comissário Aristides, disse que recebeu ordem de me levar ao batalhão (…) À essa altura, eles não têm mais respeito por nada. Eles rasgaram a Constituição, temos que achar uma maneira de lutar”.

“Nos levaram pra Florianópolis e nos exibiam pro povo ver, os comunistas. Éramos 91 presos, todos por razões políticas. Fiquei 65 dias lá. (…) Houve golpe, calaram-se oposições, os deputados e senadores se curvaram, como de hábito, (o presidente) Jango foi pro exílio e aguardamos o que ia acontecer”.

“No dia 3 de outubro de 1967, estava no portão da minha casa, parou um fusca velho com dois homens dentro. O senhor está preso e incomunicável, disseram. (…) Fui levado pro quartel do 62 BI. Lá me puseram numa sala vazia e me deixaram lá. (…) Me levaram pro batalhão do famoso coronel Ferdinando de Carvalho (da Operação Araucária). Fiquei 27 dias incomunicável e em lugar incerto, mas um grupo de amigos em Curitiba resolveu me procurar e criaram um torneio de futebol entre quarteis. Um dos meus amigos dava os prêmios e começaram a ir ao torneio, perguntavam dos presos, e um dia um amigo chegou e me achou”. 

“Só tive um momento de pavor, quando me botaram num jipe, me levaram pra Curitiba. (…)  Fui descendo escada, descendo escada, e comecei a ver manchas de sangue na parede. Era a sede da Polícia Federal na época. O cidadão fez um interrogatório, mas nunca sofri violência física nenhuma”.

 Edegar Schtzamann

“Na segunda prisão, coronel Silvio Paulo Casali (na verdade, Paulo Silvio Casali, militar de Joinville morto de leucemia em 1996, segundo obituário do jornal A Notícia), era uma pessoa extraordinária, mas era do esquema repressivo, foi meu carcereiro. A mulher dele foi do movimento estudantil, tinha uma história por trás do comportamento do coronel. Ele era um sujeito inteligente, compreendida nossa luta, mas como estava no esquema, era obrigado a fazer o que mandavam. Esse cara ficou no meu ‘arquivo’”. 

“O pessoal (preso) estava estraçalhado. Não dava pra acreditar que pessoas fizessem isso com outras pessoas. Um camarada falou: ‘Edegar, eu não ‘guentei’, tive que falar seu nome, porquê eles iam buscar a minha mulher, as minhas filhas…e eu vi o que eles fazem com as mulheres, as crianças, colocam todos nus…’”.

“A grande luta não é contra os militares, é fazer democracia sem adjetivos, com democracia do proletariado, camponesa, popular; isso não deu certo! Democracia tem que ser sem adjetivo. Democracia é a única forma de governo que permite a diversidade. (…) Tanto a esquerda quanto a direita falharam. O socialismo real caiu como um castelo de areia porque queria impor suas ideias, assim como o capitalismo”. 

“Na última prisão, uma Kombi levou todos nossos livros, didáticos, marxistas, Dom quixote…Passei mal pra dizer que ele (Cervantes, autor do livro) nasceu em 1600. Ele (o policial militar)  queria saber se ele (Cervantes) era do Partido Comunista também. Era uma coisa diabólica, era qualquer livro, a gente enterrava (os livros). Se você andasse com um livro poderia ser preso”.

“O pastor evangélico pregava que Isaías e Tiago, que diziam que classe operária tinha que se organizar, tinha que fazer revolução. Mas aí prenderam o pastor e o obrigaram a dizer onde eles (o profeta Isaías e o apóstolo Tiago) moravam. O pastor passou um ano preso”. 

 Fotos de Sabrina Seibel.

 

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