Em preparação para essa audiência, o Jornalismo CVJ conversou com a presidenta do CMDM, a advogada, professora de Direito Civil da Católica-SC e pesquisadora de questões de gênero Júlia Melim Borges Eleutério sobre a correlação entre desigualdade de gênero e violência contra a mulher e sobre políticas públicas para mulheres.
Que ações podem ser tomadas pelo Poder Público para diminuir a desigualdade de gênero e a violência contra a mulher?
Algumas ações, muito a passo lento, já estão sendo realizadas. A gente já vê alguma movimentação de preocupação em relação à desigualdade de gênero no âmbito do Poder Executivo e também no âmbito do Poder Legislativo municipal a gente também percebe que existe uma certa preocupação, embora ainda essa preocupação precise ter uma seriedade um pouco maior. Mas em termos de políticas públicas me parece que falta ainda muita política pública para as mulheres aqui de Joinville, para as mulheres de todos os espaços. Tanto para a mulher da periferia, quanto para a mulher da área urbana; para a mulher da classe alta, da classe média; para as mulheres negras, as mulheres indígenas, mulheres ciganas; para as mulheres rurais… Então a gente tem alguns recortes quanto a essa desigualdade de gênero porque a questão da desigualdade não está pautada só no gênero, mas também está pautada numa questão étnico-racial e de classe social também e a gente precisa aprimorar um pouco mais essa preocupara para, de fato, garantir políticas públicas. Então, o que tem que ser feito? Primeiro, tem que se compreender qual é a estrutura de violência contra a mulher em Joinville e o que que leva a essa violência, qual que é a desigualdade de gênero que existe na cidade. Primeiro, parte do conhecimento do pressuposto que a gente precisa buscar esses dados para poder, então, a partir daí, desenvolver um espírito crítico para em seguida a gente construir as políticas públicas.
Quais dados seriam necessários e o que já está levantado para se construir essas políticas públicas?
É muito difícil a gente falar de dados em relação à violência. Por que os dados, eles são dados que não são verdadeiros – eu digo verdadeiros no sentido de que essa violência é uma violência que não é denunciada. A violência, ela é muito silenciada ainda. Seja no espaço urbano ou seja no espaço rural. A violência ela se silencia por várias razões. Então esses dados eles precisam ser melhor identificados a partir do momento que tem que se buscar mais acesso a essas mulheres que sofrem violência. Então, a gente precisa acessar mais essas mulheres, garantir que essas mulheres possam ter mais espaços para que as suas vozes sejam mais ouvidas também.
Qual aspecto relacionado à violência contra a mulher você entende que seria urgente de ser resolvido na cidade?
Pergunta difícil, né? (risos) Eu acho que tem tantas urgências em relação à violência contra a mulher, mas eu acho que primeiro é a necessidade de começar a compreender que a gente precisa dialogar com os homens. Os homens precisam compreender, assim como as mulheres que reproduzem violência – porque existe mulher machista também, existe mulher que reproduz machismo – precisam compreender de fato quais são essas violências. A gente até tava falando antes ali antes de vir para cá, e tal, que a violência, ela não pode ser considerada só uma violência física, por exemplo. A violência psicológica, moral, patrimonial, a violência sexual, são violências que precisam ser compreendidas como violência. E essas violências foram já recepcionadas pela Lei Maria da Penha (Lei Federal 11.340/2006) e que precisam ser construídas, interpretadas como violências. Então, hoje a gente tem o que? A gente tem a falta de conhecimento do que que é violência. Por que é um fenômeno complexo? É. E existem várias discussões sobre o que é violência? Sim. Mas a gente tem que começar a desconstruir que aquelas piadas, aquelas falas que são já reproduzidas pelo machismo, pelo patriarcado, elas são naturalizadas. Então essa naturalização é que precisa ser desconstruída para, a partir daí, aprender que aquilo que se fala de brincadeira – como aquele caso dos rapazes que praticaram uma baita violência contra a mulher lá da Rússia –, esse tipo de piada é violência contra a mulher. Tem um sociólogo português que fala na miniaturização da pessoa, diminuir o outro. É o que o homem faz. O homem, ele objetifica, ainda, a mulher, tentando colocar essa mulher num espaço de subalternidade em razão de uma lógica de poder. Então é a partir dessas questões que a gente precisa evoluir e compreender esse fenômeno da violência, ter essa preocupação em relação a isso.
Segundo dados da SSP/SC houve pelo menos 10 mil casos de ameaça desde 2010. Como interpretar essa informação?
É a questão que eu estava falando da banalização da violência, a naturalização da violência, a banalização da violência. Então, a partir do momento que você banaliza a violência, naturaliza e entende aquela prática ilícita como normal aparentemente parece que deixa de ser crime ou não se considera aquele fato como crime. É o caso da ameaça, porque a ameaça, pelo Código Penal, tem uma estrutura pensada de uma forma até patriarcal também – porque a gente que considerar também que nossas legislações são editadas, construídas e pensadas por homens, e não é à toa que a nossa Câmara aqui, municipal, tem apenas duas vereadoras mulheres só, o que, por si só, já confirma que essa esfera também é patriarcal. Então, quando a gente pensa em crime a gente tem que pensar que a ameaça contra a mulher é, em sendo um crime previsto no Código Penal, mas que é garantido a interpretação dessa através do que se entende como violência psicológica é que a gente consegue entender que é violência contra a mulher através do verbo, através de atos que a deixam constrangida, humilhada, perseguida, enfim. Isso é considerado como crime de ameaça e claro que isso vai depender de um processo judicial… Tem várias questões aí que a gente tem que considerar pra que, de fato, aquele que praticou uma ameaça contra a mulher venha eventualmente a ser punido. A gente tem o devido processo legal, garantias constitucionais, mas a gente não pode desconsiderar que qualquer ameaça contra a mulher não pode ser considerada ameaça porque é crime e tem que ser punido.
Qual a relação da desigualdade de gênero com a violência?
Então, quando a gente fala em igualdade de gênero ou desigualdade, o que que é isso? O que que é gênero? Primeiro começa por aí, porque as pessoas tendem a não compreender muito bem o que que seja gênero e há, de certa forma, uma confusão em relação a esse conceito. Primeiro que a gente tem que voltar na antiguidade e saber que a sociedade era dividida entre homens e mulheres, assim que a sociedade foi construída, foi pensada, entre homens que nasciam do sexo biológico masculino, e mulheres que nasciam do sexo biológico feminino. Então essa binaridade, esse binarismo é que foi incutido na sociedade como certo. Então a padronização das relações sociais, elas são pautadas nessa divisão entre homens e mulheres. Então o gênero veio como uma categoria de análise nos anos 80, em que se atribuiu a essa condição humana alguns estereótipos, alguns valores, alguns discursos, algumas narrativas que passaram a ser percebidas como algo que estava dentro de uma relação de poder. Então a mulher não pode ser compreendida simplesmente como aquela que nasce da biologia, mas sim como aquela que é estereotipada, a mulher como aquela que está dominada, a mulher como aquela que é enfraquecida, aquela mulher que muitas vezes está numa movimentação, muitas vezes, de subalternidade, mas que são construções sociais a partir do conceito de gênero. Então o gênero vem desconstruir aquela ideia de que a mulher é aquela que nasce do sexo biológico feminino porque a mulher é uma construção social. E sendo uma construção social, a sociedade adotou alguns padrões que a colocaram num lugar de inferioridade em relação ao homem. E é aí que vem a desigualdade de gênero porque se tende a pensar que o homem é que ocupa os espaços públicos, que é o homem aquele que tem voz, que é o homem aquele que é dominador, que é o provedor, que é o pai, que é aquele que manda, que é aquele que está numa condição de superioridade do que as mulheres. Então as mulheres ficaram num espaço secundário e passaram a ser conhecidas como as belas, as recatadas e as do lar. Então a gente começa a desconstruir essa condição de homem e mulher a partir desse conceito. Nesse sentido é que vem a desigualdade de gênero e a relação com a violência. Por que? Porque a partir do momento que as mulheres se deram conta de que elas não são as belas, não são as recatadas, não são as do lar, elas começaram a ocupar esses espaços que até então eram ocupados pelos homens. Então a partir dos momentos que as mulheres começaram a ocupar esses espaços, começaram a ter voz, começaram a ter um reconhecimento, começaram a buscar essa igualdade a violência começou a aumentar. Por que? Porque o homem começou a se sentir ameaçado. Então, o homem uma vez se sentindo ameaçado, diante de uma posição hegemônica que até então ele tinha, e a mulher acessando esses espaços houve de certa forma uma ameaça e aí as mulheres começaram a sofrer a violência, começaram a sofrer mais violência. Então a gente pergunta porque a violência sempre aumenta se tem a Lei Maria da Penha, porque que a violência contra a mulher só cresce se tem política pública que está garantindo direitos? Porque as mulheres ameaçam, infelizmente, os homens quando elas buscam a igualdade dentro desses espaços.
Pode-se dizer que a ameaça é o primeiro passo da violência contra a mulher?
Então, a ameaça é o início de tudo. Quando a gente fala no ciclo da violência é a partir da violência psicológica que se inicia o ciclo. Então, começa com a violência psicológica; essa violência psicológica desencadeia uma violência física; depois dessa violência física a gente tem o ciclo do arrependimento, daí o casal volta e começa tudo de novo. Então a violência psicológica ela começa num espaço doméstico, de violência doméstica contra a mulher. Mas ela também ocorre no espaço público. E você pode perguntar para qualquer mulher, quem nunca sofreu uma violência psicológica ou um assédio. Todas as mulheres já sofreram. Todas as mulheres sofrem todos os dias. Então a gente que mudar a cultura, esse índice absurdo de violência psicológica contra a mulher, ele ainda acontece porque a sociedade ainda não desconstruiu uma cultura patriarcal. Então se naturaliza, como eu tinha falado, a violência, e há uma propagação desse machismo de forma inconsciente e às vezes não é aquela coisa, ah, é culpa do machista ou é culpa daquele que reproduz. Não é bem por aí. É passado de pai para filho, de filho para neto… Até desconstruir isso é um processo que vai cair lá na educação. Por isso que eu acho que a partir do diálogo educativo é que a gente vai conseguir baixar esse índice de violência contra a mulher.
Como é o Conselho da Mulher e qual o papel dele na defesa das mulheres?
O Conselho da Mulher é um órgão que vincula tanto a sociedade civil quanto o Executivo municipal. Nós temos 16 representações. Oito cadeiras são da sociedade civil. São organizações, associações, coletivos, que participam do conselho. E as outras oito cadeiras são do Executivo. São pessoas que são nomeadas pelo prefeito da gestão atual. O conselho municipal é um órgão que faz essa interlocução entre sociedade civil e Prefeitura, justamente para garantir a criação, a proposição, a fiscalização e o controle de políticas públicas. Então, a princípio, esse é o objetivo principal do Conselho. Essa contribuição na promoção das políticas públicas.
Por Sidney Azevedo / Arte de Paula Haas