Foi com grande surpresa que Angele Maria Dias da Silva, 50 anos, soube que o tema da reportagem era zoneamento. Ela trabalha como gerente de uma lotérica no bairro Paranaguamirim. Angele nos perguntou: “existe mesmo essa coisa de zoneamento?” O motivo da pergunta era o caso de um conhecido que encontrou dificuldades para a liberação de um alvará porque o lote alcançava áreas diferentes do zoneamento urbano.
Sim, Angele e demais leitores, existe o zoneamento, e ele define muitas coisas na vida de cada um de nós que mora em Joinville. Mas o que é, ao fim das contas, zoneamento? Podemos definir, de forma simples, como a organização do uso dos terrenos da cidade. Mas talvez isso ainda soe muito abstrato.
O diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano para o Desenvolvimento Sustentável de Joinville (Ippuj), o urbanista Vladimir Tavares Constante, explica que “zoneamento é a regra para parcelamento do solo, que define como cada parte da cidade será utilizada, se será residencial, se será industrial, se será agrícola, e daí em diante”.
Constante reconhece a dificuldade de definir o conceito: “Nas cartilhas da LOT tentamos definir zoneamento de uma forma mais simples, mas não dá para simplificar muito porque senão você corre o risco de não passar a coisa como ela é”. Em conversa com o urbanista, a metáfora mais simplificada encontrada foi a de considerar a cidade como uma pizza que vai ter vários sabores (funções – comercial, industrial, educacional, mista etc.), e que será fatiada de forma a satisfazer os paladares necessários à vida em comum.
Assim como o sabor da pizza vai ser diferente em cada pedaço, em cada local da cidade o viver será diferente. Por isso nossa reportagem foi ao bairro Paranaguamirim, mais conhecido por “Panagua”, para conhecer histórias de pessoas que precisam atravessar a cidade, por conta das atuais definições de zoneamento.
Uma das pessoas que encontramos saindo da lotérica gerida por Angele foi o soldador Luiz Costa. Ele trabalhava na Busscar, e desde a falência da empresa está afastado do mercado, aguardando para receber seus direitos trabalhistas. Se Costa fosse de carro de sua casa até a empresa, pela região central da cidade, percorreria 17,3 km, levando, pelo menos, 40 minutos.
Costa, de 55 anos, era levado por um ônibus contratado pela Busscar, que buscava também outros funcionários pela Zona Sul. Eram 50 minutos, em média, para percorrer o trajeto. Nas palavras do soldador: “sempre tinha a linha especial, e daí, com o pessoal, a gente ia normal; mas, se depender mesmo de condução própria aí é complicado”.
Além das oito horas diárias de trabalho, somada à hora destinada à refeição, os trabalhadores do Panagua que atuam na Zona Industrial enfrentam mais duas horas de deslocamento. São mais de 11 horas fora de casa. Rotina que, como observa o vereador Lioilson Correia (PT), morador do bairro há 20 anos, toma tempo dos moradores que poderia ser utilizado na realização de cursos, em atividades de lazer ou para estar à disposição da comunidade.
O cotidiano puxado remonta a decisões tomadas em 1973, quando o Plano Diretor de Joinville definiu que a Zona Norte concentraria as atividades industriais da cidade, conforme a historiadora Valdete Daufemback, professora no Bom Jesus/Ielusc. Segundo Valdete, a concentração de indústrias na Zona Norte foi justificada, à época, pela proximidade ao aeroporto e pela facilidade de captação de água e, consequentemente, de energia elétrica.
“Era um período desenvolvimentista, o que implicava, dentre outras coisas, ampliação de indústrias e a ida de dinheiro público para as empresas”, diz Valdete. Dinheiro que chegava às empresas via financiamento, principalmente. Conforme a historiadora, até a década de 1960, a agropecuária era a principal atividade econômica de Joinville. Era a maior produção de leite do estado. À medida que essa atividade rural perdeu força no município, propriedades na região norte da cidade foram sendo vendidas para empresários.
Dentro desse cenário de mudanças foi aprovado o Plano Diretor de Joinville. Em termos de moradia, a zona urbana foi planejada para que as áreas onde estão, hoje, bairros como América, fossem destinados a ter uma “densidade demográfica baixa”, ao passo que áreas mais periféricas da cidade foram definidas no Plano Diretor da época como destinadas a terem “densidade demográfica média alta”. Esse esvaziamento da região central “era uma tendência dos grandes centros urbanos que Joinville tentou imitar”, segundo Valdete.
Conforme Constante, essa tendência ocorria “porque vendia-se como sonho para as pessoas ter um carro, uma residência”. A concretização dessa imagem só era possível, muitas vezes, à medida que as pessoas compravam imóveis ou construíam suas vidas em locais distantes da região central, por serem mais baratos.
Moram hoje no Panagua quase 30 mil pessoas. Existem oito associações de moradores no bairro, a maioria delas organizando os moradores conforme os diferentes loteamentos criados na região. O loteamento é um dos meios de alcançar aquele sonho da casa própria mencionado por Constante. Os valores mais baixos dos imóveis eram a forma mais próxima de alcançar esse sonho para as famílias que se fixaram e estão se fixando no Panagua.
É o caso dos Bueno Vasques. Vindas da Zona Leste de São Paulo, Maria Elinda, de 42 anos, e a filha, Midiã, de 21, estão na cidade desde dezembro. Elas trabalham como operadoras de produção na Víqua, empresa que fica no bairro Nova Brasília, e enfrentam um trajeto de 50 minutos de van para chegar até o local de trabalho, distante 11 km.
Em fevereiro chegou o marido de Elinda, Pedro Marcos Vasques. Ele é pedreiro e está trabalhando no Iririú. Pedro faz o trajeto, de 16,5 km, de moto, em meia hora, caso o trânsito esteja favorável. Maria Elinda resume o sentimento da família quanto ao bairro: “Eu amo este bairro e não iria mudar daqui se tivesse uma empresa perto”. Pedro avalia que o Panagua “tem tudo” e que “se pudesse, compraria logo um terreno” no bairro.
Das ruas do Panagua, 11% são pavimentadas. Da porção de terra destinada ao uso residencial em Joinville, 4,7% está no bairro. Em média, os moradores recebem 1,17 salários mínimos por mês, sendo que 94% dos moradores recebem até três salários mínimos.
Dentro do Paranaguamirim há, conforme a Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos), três classificações: “Zona Residencial Unifamiliar em Área de Uso Restrito”, área onde é permitida a instalação de loteamentos; “Zona Corredor Diversificado de Centro de Bairros”, área mais próxima às vias principais do bairro, como as ruas Kurt Meinert, Monsenhor Gercino e Espigão, onde devem estar concentradas edificações maiores que contemplem comércio e serviços; e uma “Zona de Empreendedorismo”, destinada à implantação de atividades industriais e à produção tecnológica.
Conforme Constante, o “polígono” formado pela ZE pode abrigar condomínios empresariais destinados a abrigar empresas e indústrias de pequeno e médio porte. Para o vereador Lioilson Corrêa, a atividade industrial na região alavancaria empregos, valorizaria os imóveis e o bairro como um todo, e traria benefícios para o trânsito de Joinville de modo geral, “à medida que a circulação da população da Zona Sul para o Centro e para a Zona Norte diminuiria”.
Corrêa considera, ainda, que possíveis problemas como a poluição ambiental e a sonora podem ser sanados porque as empresas terão de se adequar à legislação para se instalar na região. “No mínimo será necessário, para os empreendimentos maiores, estudos de impacto de vizinhança e de impacto ambiental”, acrescenta o parlamentar. Pedro Marcos conta que se preocupa que essas indústrias fiquem muito próximas às áreas residenciais.
O soldador Luiz Costa considera que a existência de empresas próximas melhoraria a vida dos habitantes da região, que não precisariam se deslocar tanto quanto fazem agora. Luiz conta que a filha, que trabalhava em Pirabeiraba, acabou deixando o emprego por conta das dificuldades com a distância a ser percorrida. O caminho mais curto, segundo o Google Maps, é de 23 km, passando por dentro da zona urbana.
A filha de Luiz fazia o trajeto de van, mas ocorria, em algumas situações, de ela perder o meio de transporte. Nesses casos, não havia como ela chegar ao trabalho a tempo. Ficaria dependendo do transporte coletivo urbano e precisaria fazer três baldeações, nas estações Itaum, Central e Norte, trajeto que levaria mais de uma hora e quinze minutos.
O soldador contou também de conhecidos que moram no bairro e que trabalham no condomínio empresarial Parque Perini, também na Zona Industrial, tendo que atravessar a cidade. “Vão de moto, né? Que carro já não compensa que [o trânsito] vira numa tranqueira”. O local fica a 18 km do bairro.
Angele, a gerente da lotérica que se surpreendeu com a existência do zoneamento, considerando a necessidade de conhecidos seus de terem que acordar mais cedo que os demais moradores da cidade, fez a seguinte observação sobre a distância para os estudantesdo bairro que estudam na Univille, na Udesc e mesmo nas faculdades da região central: “deve ser algum tipo de mapeamento já antigo e que não foi reformulado, e então é necessário reformular porque a criança que estuda hoje vai ser um jovem e deverá ter a possibilidade de se formar sem se cansar tanto”.
Uma das áreas que pode vir a ser criada para essa demanda com a Lei de Ordenamento Territorial (LOT) é um setor especial de interesse educacional na Zona Sul. A área compreende o terreno da Universidade Federal de Santa Catarina na Curva do Arroz. Pelo atual zoneamento a área é rural, mas caso a proposta da LOT passe como está, a região será transformada em área urbana. Os terrenos nos arredores da área universitária passariam a ser destinados a habitações e a atividades industriais.