DIRETORIA JURÍDICA
DIVISÃO JURÍDICA LEGISLATIVA
INFORME TÉCNICO Nº 02/2017

Assunto: Projetos legislativos que tangenciam matéria relacionada a “Trânsito e Transporte”.

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Ementa: Direito Constitucional. Competência legislativa para disciplinar matéria de “trânsito e transporte“ privativa da União, Art. 22, XI, CF/88. Reserva da Administração em relação aos Estados e Municípios que detêm apenas competência administrativa para dispor sobre as vias sob sua circunscrição: inteligência do Art. 24 do Código de Trânsito Brasileiro. Precedentes jurisprudenciais.

Inconstitucionalidade formal (ofensa à competência legislativa da União) e material (violação do pacto federativo).

1. DESCRIÇÃO DO OBJETO

O presente estudo compreende as situações que dizem respeito a projetos legislativos apresentados no âmbito do Município e que de alguma forma pretendem disciplinar questões relacionadas à matéria de “trânsito e transporte”.

De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), entende-se por trânsito a “utilização de vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupo, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga e descarga” (§ 1º, Art. 1º).

Portanto, “trânsito” consiste na utilização das vias, pouco importando o efetivo deslocamento de pessoas, veículos e animais, eis que mesmo a imobilidade desses elementos é importante ao conceito jurídico de trânsito.

Agora para se ter mais claro a abrangência desse conceito é importante compreender o significado da expressão “via”. Utilizando-se novamente o Código de Trânsito para investigar o conteúdo jurídico da expressão, entende-se que se trata da 1 A Divisão Jurídica Legislativa é órgão de natureza técnico-jurídica que tem como missão contribuir para a consecução das atividades fins do Parlamento. Por princípio, confere orientações imparciais,  eminentemente técnicas e apartidárias para instrumentalizar as discussões realizadas no Parlamento pelos detentores de mandato político (art. 49, § 2º do Regimento Interno e anexo da Resolução nº 12/13 – descrição das atribuições dos cargos de consultores legislativos).

“superfície por onde transitam as pessoas, veículos e animais, compreendendo a pista, a calçada, o acostamento, ilha e canteiro central” (Anexo I do CTB) . Na Câmara de Vereadores de Joinville e tangenciando a matéria de “trânsito” já tramitaram proposições, entre outras, com as seguintes intenções:

– obrigação para que o Poder Público construa lombofaixas (PL 56/2015; 03/2017)

– obrigação para que o Poder Público crie “bolsão para motociclistas” (PL 89/2015)

– autorização para determinadas categorias de veículos e/ou condutores utilizarem a faixa circulação exclusiva para veículos de transporte coletivo

(PLC 25/2016; PL 90/2015; 316/2014; 313/2014)

– disciplinar a circulação de veículos pesados e serviço de carga e descarga em determinados eixos viários do Município (PLC 14/2014)

Este órgão de consultoria técnico-jurídica, em todos aqueles casos, recomendou o arquivamento das proposições respectivas por entender que a iniciativa legislativa por parte do Município implica atrevimento à competência privativa da União (Art. 22, XI, CF/88) e, consequentemente, prejuízo ao pacto federativo (Art. 1º c/c Art. 18, CF/88), além de ofensa ao princípio da Reserva da Administração e Separação e Independência dos Poderes, conforme explicaremos a seguir.

2. INCOMPETÊNCIA LEGISLATIVA DO MUNICÍPIO PARA APRESENTAR PROJETOS DE LEI SOBRE A MATÉRIA DE TRÂNSITO E TRANSPORTE

Em que pese as sempre elevadas intenções do ente municipal para editar lei com vistas a disciplinar aspectos das vias sob sua circunscrição, certamente, o Poder Legislativo local não dispõe de competência para aprovar leis que tangenciam a matéria de “trânsito e transporte”.

A Constituição Federal, em seu art. 22, XI, estabeleceu ser de competência privativa da União a prerrogativa de legislar sobre esse assunto. Assim, não há que se admitir legislação municipal, mesmo sobre questões específicas acerca do tema, pois somente a esfera federal está autorizada a editar leis a este respeito (excetua-se da hipótese os Estados quando autorizados por lei complementar federal; regra do art. 22, parágrafo único, CF).

À guisa de exemplo, destaca-se o magistério do eminente constitucionalista Alexandre de Moraes:

A Constituição Federal de 1988, alterando a disciplina anterior (CF/69, art. 8º, XVII, n, c/c o seu parágrafo único – competência concorrente União/Estados), previu a competência privativa da União para legislar sobre as regras de trânsito e o transporte (CF, art. 22, XI). Essa alteração constitucional fez com que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pronunciando-se sobre o preceito inscrito no art. 22, XI, da Constituição Federal, declarasse competir privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte, proibindo-se, via de consequência, aos Estados-membros, a possibilidade de editar normas peculiares a essa mesma matéria, por não se encontrar tal hipótese contemplada no rol exaustivo das competências comuns (CF, art. 23) e concorrentes (CF, art. 24) atribuídas. (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 30ª ed. São Paulo: Atlas S.A, 2014, p. 323).

(Sem destaques no original)

Com efeito, “o trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação” é regido pela Lei Federal nº 9.503/97, o 

Código de Trânsito Brasileiro, e, de certa feita, todas as entidades da federação devem obediência a esse Diploma Legal. Neste ponto convém explicar que, embora não seja admitido aos Estados, Distrito Federal e Municípios a elaboração de leis em sentido estrito para tratar de “trânsito e transporte”, o Código Trânsito autoriza estas entidades federativas a regulamentar, isto por meio de ATOS ADMINISTRATIVOS (e não lei), questões inerentes à circunscrição de seus territórios.

E realmente, o art. 2º do CTB, ao conceituar o que deveria ser entendido por “vias terrestres”, estabeleceu que o uso destas vias será regulamentado por órgão ou entidade com circunscrição sobre elas, inclusive, no que diz respeito à implantação, manutenção e operação do sistema de sinalização e dos dispositivos e equipamentos de controle viário (art. 21, III, CTB).

No âmbito de jurisdição deste Município, o órgão/entidade com circunscrição sobre as vias municipais não está materializado neste Poder Legislativo,

mas na figura do Departamento de Trânsito de Joinville – DETRANS (art. 2º, Lei Complementar Municipal 378/12), assim como de outros órgãos que integram a estrutura do Poder Executivo.

Assim, conclui-se: o Município NÃO detém competência legislativa para dispor sobre o assunto, apenas competência material, isto é, de ordem administrativa STF – Pleno – ADI 3269/DF – Rel. Min. Cezar Peluso, decisão: 01/8/2011; STF – Pleno – ADI 3121/SP – Rel. Min. Joaquim Barbosa, decisão:17/03/2011; STF – Pleno – ADI 3.135-0/PA – Rel. Min. Gilmar Mendes, Diário da Justiça, Seção I, 08/09/2006, pág. 33. para, por meio de órgãos próprios do Executivo, baixarem regulamentos pontuais naquilo que o Código de Trânsito autorizar.

3. PRINCÍPIOS DA RESERVA DA ADMINISTRAÇÃO E DA SEPARAÇÃO E INDEPENDÊNCIA DOS PODERES

De acordo como o que preleciona o Código de Trânsito Brasileiro é de se ver que os Estados Membros, os Municípios e o Distrito Federal, conquanto não
possuam competência legislativa para disciplinar o assunto, receberam delegação para adoção de providências administrativas por meio de seus órgãos e entidades executivos de trânsito (Art. 21). Especificamente em relação aos Municípios, o Art. 24 do CTB relaciona as seguintes medidas que poderão ser promovidas pela instância local:

Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:

I – cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no âmbito de suas atribuições;

II – planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas;

III – implantar, manter e operar o sistema de sinalização, os dispositivos e os

equipamentos de controle viário; IV – coletar dados estatísticos e elaborar estudos sobre os acidentes de trânsito e suas causas;

V – estabelecer, em conjunto com os órgãos de polícia ostensiva de trânsito, as diretrizes para o policiamento ostensivo de trânsito;

VI – executar a fiscalização de trânsito em vias terrestres, edificações de uso público e edificações privadas de uso coletivo, autuar e aplicar as medidas

administrativas cabíveis e as penalidades de advertência por escrito e multa,  por infrações de circulação, estacionamento e parada previstas neste Código, no  exercício regular do poder de polícia de trânsito, notificando os infratores e arrecadando as multas que aplicar, exercendo iguais atribuições no âmbito de edificações privadas de uso coletivo, somente para infrações de uso de vagas reservadas em estacionamentos;

VII – aplicar as penalidades de advertência por escrito e multa, por infrações de circulação, estacionamento e parada previstas neste Código, notificando os infratores e arrecadando as multas que aplicar;

VIII – fiscalizar, autuar e aplicar as penalidades e medidas administrativas cabíveis relativas a infrações por excesso de peso, dimensões e lotação dos

veículos, bem como notificar e arrecadar as multas que aplicar; IX – fiscalizar o cumprimento da norma contida no art. 95, aplicando as

penalidades e arrecadando as multas nele previstas;

X – implantar, manter e operar sistema de estacionamento rotativo pago nas vias;

XI – arrecadar valores provenientes de estada e remoção de veículos e objetos, e

escolta de veículos de cargas superdimensionadas ou perigosas;

XII – credenciar os serviços de escolta, fiscalizar e adotar medidas de segurança

relativas aos serviços de remoção de veículos, escolta e transporte de carga

indivisível;

XIII – integrar-se a outros órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito

para fins de arrecadação e compensação de multas impostas na área de sua

competência, com vistas à unificação do licenciamento, à simplificação e à

celeridade das transferências de veículos e de prontuários dos condutores de uma

para outra unidade da Federação;

XIV – implantar as medidas da Política Nacional de Trânsito e do Programa

Nacional de Trânsito;

XV – promover e participar de projetos e programas de educação e segurança de

trânsito de acordo com as diretrizes estabelecidas pelo CONTRAN;

XVI – planejar e implantar medidas para redução da circulação de veículos e

reorientação do tráfego, com o objetivo de diminuir a emissão global de

poluentes;

XVII – registrar e licenciar, na forma da legislação, ciclomotores, veículos de

tração e propulsão humana e de tração animal, fiscalizando, autuando,

aplicando penalidades e arrecadando multas decorrentes de infrações;

XVII – registrar e licenciar, na forma da legislação, veículos de tração e

propulsão humana e de tração animal, fiscalizando, autuando, aplicando

penalidades e arrecadando multas decorrentes de infrações;

XVIII – conceder autorização para conduzir veículos de propulsão humana e de

tração animal;

XIX – articular-se com os demais órgãos do Sistema Nacional de Trânsito no

Estado, sob coordenação do respectivo CETRAN;

XX – fiscalizar o nível de emissão de poluentes e ruído produzidos pelos veículos

automotores ou pela sua carga, de acordo com o estabelecido no art. 66, além de

dar apoio às ações específicas de órgão ambiental local, quando solicitado;

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XXI – vistoriar veículos que necessitem de autorização especial para transitar e

estabelecer os requisitos técnicos a serem observados para a circulação desses

veículos.

(Sem destaques no original)

Assim, a regulamentação que se mostra factível no âmbito da localidade

em relação ao assunto é realizada de forma administrativa. Em outras palavras, a

matéria está adstrita à “Reserva da Administração” e o espectro normativo para

disciplinar o assunto é eminentemente administrativo, isto é, deve ser traduzido por ato

administrativo editado pelo Chefe do Executivo (Art. 68, II e IX, Lei Orgânica), o qual

não se confunde com a atribuição típica e predominante da Câmara de Vereadores que é

editar normas gerais e abstratas para disciplinar relações jurídicas de índole local. Nesse

sentido, ensina Hely Lopes Meirelles que:

A atribuição típica e predominante da Câmara é normativa, isto é, a de

regular a administração do Município e a conduta dos munícipes no que

afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece

apenas, normas de administração… De um modo geral, pode a Câmara, por

deliberação do Plenário, indicar medidas administrativas ao prefeito

adjuvandi causa, isto é, a título de colaboração e sem força coativa ou

obrigatória para o Executivo; o que não pode é prover situações concretas

por seus próprios atos ou impor ao Executivo a tomada de medidas

específicas de sua exclusiva competência e atribuição. Usurpando funções

do Executivo, ou suprimindo atribuições do prefeito, a Câmara praticará

ilegalidade reprimível por via judicial. (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito

Municipal Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, p. 605-606)

(Sem destaque no original)

“No nosso sistema político”, consigna o respeitável Tribunal de Justiça de

Santa Catarina, “a função legislativa atribuída à Câmara dos Vereadores tem caráter

genérico e abstrato, restando as questões específicas aos cuidados do Poder

Executivo, que, com seu aparato de apoio, estará mais apto ao regramento de questões

práticas que afetem a toda a população” (TJ-SC. Ação Direta de Inconstitucionalidade

2014.036700-6 da Capital, Relator Desembargador Vanderlei Romer).

Portanto, a matéria é afeta à gerência exclusiva administrativa do

Chefe do Poder Executivo, não podendo o Parlamento substituir-lhe neste mister,

mesmo que pretendesse somente autorizá-lo a adotar medidas específicas.

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Isto porque, em regra, a lei deve possuir comando impositivo àquele

que se dirige, sob pena de ser injurídica. Segundo o magistério de Sérgio Rezende de

Barros, autorizativa é a lei que:

… por não poder determinar – limita-se a autorizar o Poder Executivo

a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois

estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da

“lei” começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder

Executivo autorizado a…’. O objeto da autorização – por já ser de

competência constitucional do Executivo – não poderia ser

‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo. Tais ‘leis’,

óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria

cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já

o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente3

.

(Sem destaques no original)

E ainda nas palavras de João Trindade Cavalcante Filho:

Não se pode, obviamente, autorizar o Executivo a exercer função que

já lhe é constitucionalmente conferida, sob pena de se ter uma

verdadeira lei didática, algo incompatível com o próprio

instrumento da lei e com o princípio da legalidade (art. 5º, II).

Desse modo, é preciso evitar que o Legislativo, para escapar de uma

possível inconstitucionalidade, por vício de iniciativa, incida em outra,

por editar uma lei despicienda e, mais que isso, inócua e desprovida de

qualquer efeito prático4

.

(Sem destaques no original)

De certa feita, não cabe ao Poder Legislativo, por iniciativa própria,

aprovar leis que, conquanto formalmente autorizativas, caracterizam verdadeira

ingerência na atividade típica do Poder Executivo (Precedentes STF, Pleno ADIn

3.176/AP, Relator Ministro Cézar Peluso, DJE 05.08.2011) e este fato – a condição meramente

autorizativa da lei – não é suficiente para afastar a ofensa ao princípio constitucional da

Reserva de Administração:

O princípio constitucional da reserva de administração impede a

ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à

exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. (…) Essa

prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei,

3 BARROS, Sérgio Resende de. “Leis” autorizativas. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos,

Bauru, n. 29, pp. 259-265, ago./nov. 2000.

4 CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Limites da Iniciativa Parlamentar sobre Políticas Públicas:

uma proposta de releitura do art. 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal. Texto 122. Núcleo de

Estudos e Pesquisas do Senado Federal: Brasília, 2013.

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transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa

comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em

atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua

atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o

exercício de suas prerrogativas institucionais. (STF, Pleno, MC na

ADI nº 2.364/AL, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de

14.12.2001.)

4. CONCLUSÃO

Tecidas todas estas considerações, recomenda-se que, ao discutir a

admissibilidade jurídica de projetos legislativos que tangenciam matéria afeta a “trânsito

e transporte”, a Comissão de Legislação, Justiça e Redação rejeite essas proposições,

tendo em vista a materialização de vícios de ordem formal (ofensa à competência

legislativa da União, Art. 22, XI, CF/88) e material (desrespeito ao princípio da reserva

da administração; Art. 24 do Código de Trânsito Brasileiro).

Joinville, em 24 de março de 2017.

Arthur Rodrigues Dalmarco

Consultor Jurídico

Deborah Pierozzi Lobo

Consultora Jurídica

Denilson Rocha de Oliveira

Consultor Jurídico

Maurício Eduardo Rosskamp

Coordenador da Divisão Jurídica Legislativa