Em audiência pública promovida nesta segunda-feira (23) pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), vereadores, representantes da Prefeitura, artistas e produtores culturais dos mais variados ramos discutiram os projetos de lei que propõem alterações ao Sistema Municipal de Desenvolvimento pela Cultura, o Simdec.

Em um plenarinho lotado, em que alguns dos presentes chegaram até a sentar-se no chão, as solicitações mais presentes eram pelo arquivamento dos projetos e para que a Câmara aguardasse o desenvolvimento do diagnóstico de política cultural contratado pela Secretaria de Cultura e Turismo (Secult) e em desenvolvimento pela Univille.

No fim da reunião, parte dos presentes estendeu faixas com dizeres como “Retrocesso, não”, “Volta, fundação”, “Cultura não é mercadoria”, “Cultura somos nós”, “Cultura não é do turismo”, “Censura, não” e “Não muda o Simdec”.

O diagnóstico, observou a presidente do Conselho Municipal de Política Cultural, Roberta Meyer, é um trabalho que ainda está em andamento, e que foi contratado por cerca de R$ 180 mil pela Secult.

Sobre o diagnóstico em si, o professor de Direito da Univille, Denis Radun, citou que a universidade já fez encontros com as comunidades mais periféricas da cidade quanto ao alcance das ações patrocinadas pelo Simdec, bem como um levantamento de teses e dissertações desenvolvidas sobre as políticas culturais, e, ainda, dos equipamentos de cultura da cidade, mas que a elaboração do estudo completo ainda deve levar mais alguns meses, entrando em 2024.

A pianista e produtora cultural Marisa Toledo disse que “aprovar esses projetos sem o diagnóstico é jogar fora dinheiro público”. Além do diagnóstico, Toledo ainda observou que as leis podem ficar defasadas caso o Marco Regulatório do Fomento à Cultura seja aprovado pelo Senado.

No último dia 10 de outubro, a CCJ da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Federal 3905/2021. Conforme a Agência Câmara de Notícias, “pelo texto aprovado, a execução do regime próprio de fomento à cultura poderá contar com repasses da administração pública, nas categorias de execução cultural, premiação cultural e bolsa cultural, ou mediante contrapartidas do setor privado, na forma dos termos de ocupação cultural e de cooperação cultural”.

Além disso, a agência ainda menciona que “em todas as hipóteses, a implementação do regime próprio de fomento à cultura deverá garantir plena liberdade para a expressão artística, intelectual, cultural e religiosa, respeitada a laicidade do Estado. A proposta prevê ainda regras para chamamento público, análise e seleção das iniciativas culturais”.

Relator dos dois projetos em discussão na CCJ, o vereador Lucas Souza (PDT) disse aos presentes: “Eu não tenho pressa de apresentar esse parecer, porém esse processo precisa ter um fim”. O parlamentar pontuou que não pretende avançar sem a conclusão do diagnóstico. Ele reconheceu que os projetos de leis para mudanças no Simdec não representam a aspiração da classe cultural joinvilense.

A reunião foi presidida pelo vereador Neto Petters (Novo, um dos autores de um dos projetos em discussão), e contou com a participação dos vereadores Lucas Souza (PDT, relator dos projetos), Cleiton Profeta (PL, autor do outro projeto em debate), Ana Lucia Martins (PT), Henrique Deckmann (MDB) e Wilian Tonezi (Patriota).

Na próxima segunda-feira (30), mais uma audiência pública sobre os projetos será realizada.

O que dizem os projetos?

As propostas em discussão são os Projetos de Lei Ordinária 163 e 164, ambos deste ano. O PL 163 é de autoria da bancada do partido Novo, composta pelos vereadores Alisson, Érico Vinicius e Neto Petters. Entre outras coisas, a proposta estabelece que “o valor repassado aos mecanismos do Simdec (…) deverá ser destinado exclusivamente a projetos culturais considerados relevantes para o desenvolvimento da cidade”.

Para definir o que seriam projetos relevantes para o desenvolvimento da cidade, o texto assinado pelos parlamentares diz que são “aqueles que destacam o turismo e a cultura da cidade, geram mais emprego e renda para os moradores de Joinville e movimentam a economia da cidade”.

Os vereadores ainda pretendem fixas no texto da lei uma lista de itens a serem cumpridos pelos proponentes de projetos culturais referentes à prestação de contas, bem como a necessidade de apresentação de “uma cotação de mercado para cada item de despesa indicado na planilha orçamentária, de empresa do ramo compatível ao objeto, exceto quanto o teto do serviço constar na Tabela de Valores SIMDEC”.

Um último ponto importante da proposta da bancada do partido Novo diz respeito às vedações da aprovação de projetos. Na atual lei do Simdec, a Lei 5.372/2005, a vedação é a propostas que não sejam estritamente culturais. Além dessa vedação, os vereadores do Novo querem que, entre outras coisas, não sejam aprovados propostas culturais que:

  • contenham ações que evidenciem a intenção de promover ou depreciar a imagem política e pessoal de qualquer cidadão;
  • contenham ações que evidenciem intenção de promover ou depreciar ideologias políticas, religiosas, raciais e/ou culturais que apresentem caráter sectário ou discriminatório;
  • não valorizem a cultura e turismo da cidade de Joinville; e
  • não movimentem a economia ou gerem emprego e renda para a cidade de Joinville.

Já o projeto 164/2023, de autoria do vereador Cleiton Profeta (PL) propõe, entre outras coisas:

  • uma reorganização da parte do texto que trata dos segmentos culturais;
  • a proibição a que pessoas que estejam inadimplentes com o município componham a Comissão de Análise de Projetos;
  • a extinção da atual gratificação dada aos membros dessa comissão (atualmente meia unidade padrão municipal a cada reunião);
  • a restrição ao território de Joinville a mão de obra que deve participar dos projetos;
  • o condicionamento da aprovação da prestação de contas dos projetos à comprovação de que a atividade cultural alcançou pelo menos 51% do público-alvo pretendido; e
  • o estabelecimento de multa equivalente ao dobro do valor que deveria ser aplicado no projeto.

Atrelamento entre cultura e turismo

Algumas das críticas feitas durante a audiência foram direcionadas ao atrelamento entre cultura e turismo, pontuou o professor de Direito da Univille, Denis Fernando Radun, tende a direcionar os recursos para o campo do turismo, o que potencializa um enfraquecimento do campo da cultura. Para o maestro Rafael Huch, “cultura é uma coisa, turismo é outra” e defendeu que sejam tratadas de formas distintas.

Conforme alguns dos participantes da audiência observaram, a situação da cultura como um todo, incluindo o Simdec, passou por uma série de alterações com a reforma administrativa da Prefeitura realizada em 2017.

Na ocasião, o governo Udo Döhler extinguiu quase todas as fundações do município, transformando-as em secretarias. Antes dessa data, as políticas de cultura da cidade eram geridas pela Fundação Cultural de Joinville, enquanto as de turismo o eram pela Fundação Turística de Joinville. Foi nessa reforma que surgiu a Secretaria de Cultura e Turismo, cuidando das atribuições que eram tocadas antes pelas duas fundações.

Fundações são órgãos públicos que têm um grau maior de autonomia dentro da estrutura estatal. Elas têm um CNPJ distinto do da Prefeitura, por exemplo, o que assegura ainda um orçamento à parte. A reforma de Udo, à época, indicava um interesse em estabelecer uma centralização do Poder Público, em uma gestão mais direta das pastas e também de seus orçamentos.

Essa centralização também conduziu a uma forma distinta de gerir contratos e editais, que passaram a ser feitos pela Secretaria de Administração e Planejamento. Os editais do Simdec, por exemplo, estão entre os que passaram por esse trâmite. Sobre essa questão, a pianista Marisa Toledo disse que parece que a Secretaria de Administração e Planejamento “não sabe lidar com a cultura”.

Mais para o audiovisual?

Outro debate que ocorreu foi sobre a possibilidade de uma elevação da parcela do Simdec a ser destinada para o audiovisual. Embora não seja uma questão afetada diretamente pelos projetos de lei em debate na audiência pública, o tema rendeu visões distintas sobre a questão.

O diretor cinematográfico Anderson Dresch defendeu que o valor a ser destinado ao audiovisual seja de 80% em relação às outras áreas porque, a seu ver “toda cultura vai desembocar no audiovisual”, com a produção de videoclipes, vídeos de escritores, etc. Ele ainda acentuou que já há dois cursos de cinema na cidade. Já o maestro Rafael Huch, por outro lado, entende que a redistribuição de recursos, se houver, deve se dar de forma igualitária.

Mecenato vs. incentivo

A atual lei do Simdec define que a verba do sistema é dividida ao meio, metade para o incentivo à cultura (o dinheiro vai diretamente para a atividade de produção cultural) e metade para o mecenato (quando os artistas obtêm a verba por meio de renúncia fiscal, a exemplo da Lei Rouanet, isto é, quando o empresário deixa parte do imposto de renda para a atividade cultural).

O jornalista Altamir Andrade defendeu que seja de 80% a parcela destinada ao incentivo à cultura e de 20% ao mecenato, que em geral financia projetos de maior vulto, capazes de atrair marcas maiores.

Outras considerações

O cantor e multiartista Jesus Lumma destacou o longo processo de formulação da atual lei do Simdec e citou que os projetos periféricos não alcançam os recursos do sistema.

Débora Richter, também conselheira, perguntou o que é considerado como “relevante” e “oportuno”, referindo-se ao projeto dos vereadores do partido Novo. Ela ainda pediu melhor definição do que entende por cultura.

Denis Radun criticou ainda a restrição do projeto do vereador Profeta à realização dos projetos apenas com mão-de-obra residente em Joinville. O professor destacou que “é preciso fomentar o intercâmbio cultural, não se pode fazer apenas endocultura”.

A artista plástica Vera Lucia Pereira defendeu a rejeição dos projetos por inconstitucionalidade e vício de origem (afetar temas que deveriam ser propostos pelo Poder Executivo).